sexta-feira, 6 de abril de 2012

Olhares de criança na memória de uma avó: Mercadão da Cantareira, Beco da Fábrica, Caetano de Campos, dentre outros

Por Neusa Meirelles Costa


Tinha que ir ao Mercadão com mamãe, mas eu gostava mesmo era de ir à feira, lá na Avenida Tiradentes, onde ficava a banca de uma senhora alemã, quase em frente à Igreja de São Cristóvão, que vendia salsichas Santo Amaro (ela sempre me dava uma, e falava arrastado). Obrigatoriamente, quando ia à feira, passava pelo Jardim da Luz, e no jardim das rosas mamãe repetia que enterrara meu umbigo sob uma roseira “para você ficar bonita” - dizia. Acho que ela se esquecera dos espinhos, mas isso é coisa de mãe.
Para ir à feira, saíamos pelos fundos do Edifício Maluf, que dava para o Beco da Fábrica. Não sei se ainda existe, mas era o lugar de brincadeiras, sob olhar vigilante de mamãe. Nas poucas casas, moravam senhoras, que mamãe cumprimentava. Creio que o beco tinha calçamento de pedras, ou de paralelepípedos, porque não se podia correr ali. Em frente, na Rua Florêncio de Abreu, ficava a Casa Del Guerra, ferragens, armas e outras coisas que não me interessavam absolutamente.
O Jardim da Luz era uma espécie de quintal à distância: eu conhecia seus espaços e alamedas, brincava com crianças judias, cujas mães mal falavam português, eu que morava na Rua 25 de Março, em um edifício onde moravam famílias turcas, sírias, libanesas, uma família judia húngara, outra italiana e nós, uma combinação de carioca com paulista tradicional. De todas guardo recordações e estórias boas, e não é à toa que sou socióloga...
Mas ir ao Mercadão não era bom: tinha que passar no “Mercadinho”, e comprar verduras, sentia a tristeza antecipada de comer espinafre e de sujar os pés com a “laminha” preta daquele chão molhado, que entrava pela sandália branca. Os cheiros também não me agradavam, eram piores que os do Gasômetro, no Parque Dom Pedro, “cheiro” que fui obrigada a “respirar” para curar a “tosse comprida”. Do “Mercadinho” ainda ouço, se me esforçar, os “Eh!” dos carregadores avisando que eu, distraída, estava atrapalhando os carrinhos cheios de engradados de aves.
Da Rua 25 de Março, onde morávamos, íamos, mamãe e eu, de ônibus (João Ramalho) ou andando para o Instituto de Educação Caetano de Campos na Praça da República. No caminho cruzávamos a Rio Branco em construção, e a certa altura eu me lembro que se via a farmácia de seu Antonio, em uma esquina. Lembro-me do grande globo verde, de vidro que ficava em cima do balcão; mas é só, porque a esquina desapareceu, e farmácia lembra injeção de vitamina, um horror de toda infância.
A Avenida Ipiranga se anunciava no caminho, depois que acabavam “as obras”. A calçada então, era larga, passávamos por um restaurante (Scavoni?) muito chique, mas do qual se dizia “onde a gente paga, mas não come”, depois pelo Brahma, na esquina da Avenida São João. Dali era possível ver o Cinema Metro, um programa das matinês de domingo. A seguir passávamos pelo Marabá, à época um elegante cinema, do outro lado, o Ipiranga, onde assisti a vários desenhos de Disney. NNa esquina da Rua 24 de Maio ficavam do outro lado, uma loja de pianos, e desse lado, depois do Marabá e de um Hotel, creio que o Terminus, uma loja de bijuterias. Eram duas tentações separadas por uma avenida: do outro lado, a música na interpretação de pianistas que ali executavam peças, desse lado, as “jóias para gente grande”, que eu não via a hora de poder usar.
Fiz o Curso Primário na Caetano de Campos, tenho fotos amareladas das turmas, das professoras, Dona Lourdes de grandes olhos verdes e turbantes, Dona Vera, também de olhos verdes, moderna, chique, e dirigia um a carro! Dona Rosário, Dona Isaura e Dona Olga, de óculos, sempre muito séria. Guardo lembrança viva de Dona Iracema, a bibliotecária que estimulou meu amor pelos livros, e de Dona Preciosa, cabelos brancos, tingidos de lilás. Ela me fez saber que “biblioteca não é um lugar para uma criança de nove anos vir todo dia”. Acontece que eu gostava muito de Castro Alves, seus poemas compridos, e a cópia demorava... Só depois fiquei sabendo que poderia retirar emprestado da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, da Caetano de Campos, o livro Espumas Flutuantes, mas então, a despeito da ranzinza Dona Preciosa, eu já copiara os dois poemas: Navio Negreiro e Vozes d’África.
Na “Caetano” descobri a cultura brasileira nas comemorações do Centenário de Sílvio Romero. Dona Helena, de quem infelizmente não sei o sobrenome, produziu um espetáculo de canto e dança: “Reisados”. Fui uma marquesa de nove anos, talvez desafinada, que cantava “Entrai, entrai, boa gente...” para os pastores da visitação.Depois das aulas, à tarde, lá ia eu, pela mão de mamãe, para a Aliança Francesa, na Praça Dom José Gaspar, pela Rua 7 de Abril. No caminho, passava pela Boite Oásis, e a curiosidade de criança olhava as escadas, querendo ver além da porta, aquele lugar de tanto charme, como eu ouvia nas conversas dos adultos. Em compensação, saindo da Aliança, era o momento para comer o melhor sanduíche de lingüiça que provei na fome da minha infância: na esquina da Rua 7 de Abril com a Conselheiro.
Digo o melhor “sanduíche de lingüiça” porque em matéria de hot-dog, nada havia de melhor que os das “Lojas Americanas”, na Rua Direita. Ir para lá com mamãe era ser submetida a uma tortura, mas o sanduíche era o prêmio de consolação. As Lojas Americanas eram cheias, de compradoras ávidas por tudo, mas havia um problema: crianças da minha altura não enxergavam os produtos expostos sob intensa iluminação, atiçando a curiosidade de menina, que se não podia usar brincos e pulseiras, pelo menos desejava vê-los. Mas não podia, porque mesmo nas pontas dos pés, e não podia me apoiar nas beiradas que eram de vidro, eu apenas enxergava cartões e mais cartões, o perfil dos brincos, pulseiras e enfeites. Era uma tristeza. Merecia o prêmio de um hot-dog com mostarda e uma “caçulinha”, a guaraná daqueles tempos...
Depois era voltar pela Praça do Patriarca, uma passadinha na Igreja Santo Antônio, observar mais uma vez o dourado do barroco, que minha infância não entendia, seguir pela Rua São Bento, entrar no Mosteiro, onde fiz a Primeira Comunhão, e ainda caminhando, chegar à casa pelo Beco da Fábrica.
Essas são lembranças de uma São Paulo que à época era minha, de uma criança. São olhares e impressões que guardo na memória, coisas que retornam quando leio outros resgates de memória, que figuram nessa São Paulo virtual de todas as lembranças.

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