História escrita em 1994, por ocasião dos 100 anos do prédio da Escola, para o livro organizado por Maria Candida Delgado Reis.Infelizmente Eliana Cáceres, veio a falecer à alguns anos atrás.
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O ano era 1964; eu cursava a 1ª série do Ginásio e gritava:
“LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS SOBRE NÓS”
e baixinho:
“Nas lutas, nas tempestades,
Dá que ouçamos tua voz”
Era assim que cantávamos na Escola da Praça, na Caetano de Campos, em plena Praçada República, ao comemorarmos a cívica data do Dia da República.
Alguns não chegavam a compreender que aquele brado, entoado gritadamente, para a maioria significava o que os olhos atônitos de todos, alunos e professores, percebiam, no confronto das carabinas, metralhadoras e enormes cães contra homens, mulheres e crianças, adolescentes e velhos: a violência daqueles dias inomináveis, quando, ao faro dos policiais, qualquer cidadão poderia serpotencialmente “subversivo” ou “suspeito”. Assim, abordavam indiscriminadamente, as pessoas com arrogância e prepotência de “autoridades”.
Muitas fotos mostram várias comemorações cívicas realizadas nos pátios ou no auditório sob o olhar orgulhoso-amedrontado, cúmplice e isolado da diretora da Escola, Dona Yolanda de Paiva Marcucci, e dos representantes do alto comando do 2° Exército. Pareciam tão cientes e convictos de seus papéis, enquanto nós, alunos – muito indignados, outros indiferentes e outros ainda muito assustados -, encenávamos o que pouco ou nada significavam aquelas comemorações, pois nem mesmo a introdução da matéria Educação Moral e Cívica representava algum elo entre a realidade hostil que vivíamos e o ideário sem ideais com que eram ministradas aquelas aulas, normalmente por professores “dedocraticamente” indicados para o tal “nobre mister” – que ironia!
Que paradoxo relembrar esses tempos, nós que atravessamos a Escola e aprendemos dentro de seus muros a verdadeira cidadania, pois vivíamos como iguais: brancos, negros, amarelos, deficientes físicos, cegos, ricos, pobres, católicos, judeus, protestantes, de outras ou nenhuma crença. Todos recebendo o mesmo tratamento, o mesmo respeito humano e tendo acesso a tudo de maravilhoso que aquele equipamento público oferecia aos seus alunos.
Foi naquelas salas de aula que começamos a aprender a montar as peças do grande quebra-cabeças – que é a vida. Foi lá que recebemos instrução, informação, conhecimento, que aprendemos a investigar, ver, ouvir, sentir o mundo através de nossos educadores.
Educadores estes que ministravam aulas não só na Caetano de Campos, mas também em escolas particulares – naquela época, a concorrência entre o ensino público e o privado era absolutamente leal. O fator critério e preferência dos pais é que guiava o contingente de alunos para esta ou aquela escola, pois a instrução na sua verdadeira concepção estava assegurada tanto nos renomados colégios particulares como nas igualmente respeitada e concorridas escolas públicas.
Nossos professores eram tidos e vistos com respeito, deferência, dignidade – tal qual um magistrado, representante do Poder Judiciário. Eram pessoas que denotavam ter um bom padrão de vida, além do conhecimento que possuíam; eram na maioria especialistas, pós graduados, concursados, enfim, avaliados e abalizados para exercer o ofício de educador. Não transmitiam a nós, alunos, nenhuma aspecto pessoal trágico ou grave; ao contrário, mostravam-se muito seguros, tranquilos, dedicados e conscientes de seus papéis enquanto mestres e, sobretudo, absolutamente profissionais.
É claro que exceções havia: aqueles mestres menos dedicados, mais relapsos, ou no mínimo menos cônscios de seu papel de educador, e até alguns colaboracionistas com o regime vigente, que para muitos de nós,representava desaponto e vergonha.
Mesmo assim, todos os meus colegas de turma e os da década de 60 em geral, ao sairmos da Caetano de Campos, conseguimos entrar tranquilamente nas melhores Universidades do Estado.
Mas, vamos continua recordando, pois, sem fugir ao lugar-comum, “recordar é viver”.
Depois que saí da Caetano de Campos em 1970, treze anos após lá ter entrado, fiquei muito tempo sem poder retornar ao prédio, tamanha a frustração que me causava sabê-lo não mais abrigando as crianças e jovens, vê-lo mutilado, senti-lo não mais a fortaleza que significou para mim. Todo o aconchego que sentia no prédio da praça havia acabado.
Demoliram em mim, ao cindirem o colégio e deixarem o entorno do prédio deteriorado, tudo o que de mais caloroso, alegre e promissor havia sido construído, dentro daqueles muros, com seus equipamentos e aparatos, por meus mestres, em nossa geração.
Lá retornei unicamente no Dia do Grande Protesto, em 1975, contra o ato criminoso das autoridades que pretendiam demolir a minha Escola, a nossa Escola, a Escola Modelo da Cidade de São Paulo. A esta altura eu terminava meu curso de Direito na Faculdade do Largo São Francisco, outro reduto querido da minha história, mas incomparavelmente diferente do amor profundo que sempre dediquei ao meu segundo lar, que ficava na Praça da República, N° 53.
Cheguei à Escola aos seis anos de idade, aquinhoada que fui num sorteio de prévias inscrições. Recordo-me do orgulho que senti ao vestir meu primeiro uniforme- um aventalzinho branco com babados nos ombros-, e da alegria e emoção com que eu levava a capinha da minha cadeirinha de Jardim de Infância, com o meu nome inscrito em bordado simples, meias soquetes, com botinhas Kicker pretas.
Aos sete anos fui para o Primário. Aí o status do uniforme mudava e com ele o meu sentimento também: a grande responsabilidade que representava estar no Instituto de Educação Caetano de Campos- IECC.
À medida que os anos passavam e as bolinhas bordadas no bolso da blusa branca , que se compunha com a saia de pregas azul-marinho de sarja, iam aumentando em número, simbolizando o ano do curso frequentado, mais compreendia o quão importante para mim, vinda de um berço simples, significava estudar e ter de me aplicar para me manter naquela Escola de alto nível. Até hoje me intriga a precocidade dessa responsabilidade, mesclada de medo de perder o lugar em minha segunda casa – a referência do meu mundo era a Escola, onde eu me sentia segura, amparada, cuidada, até por médicos e dentistas, com todas as campanhas da Secretaria da Saúde.
Duas vezes por semana tínhamos aulas na biblioteca – como me encantva cruzar as portas do museu que antecedia a sala dos livros, dos filmes, dos discos, do conhecimento!
Que gratificante eram aquelas atividades – eu tinha fome de saber!
O sol que cortava as janelas das salas de aula, às tardes no colégio, aquecia os meus sonhos de menina, que logo se tornaria uma mocinha exultante em vestir a camisa do Ginásio, no bolso da qual iria, finalmente ser pregado o emblema que representava os obstáculos já ultrapassados ao longo daqueles anos, principalmente o temido exame de “admissão ao Ginásio”.
Das janelas do 1° ano do Ginásio, recordo ter assistido à Marcha com Deus pela família e pela Liberdade – que ruído estrondoso para os meus ouvidos, quantas faixas, cartazes, adereços imensos, quilométricos, lançados ao ar, formando a massa vermelha e dourada fa TFP, ao longo da Avenida Ipiranga! Quanta mobilização que eu não compreendia! Hoje, puxando pela memória, parece que o clima era um misto de ufanismo às avessas. A quê? Naquela época eu não entendia. Passava-me a impressão de algo muito grave e assustador, que claro, teve seu desfecho dias mais tarde com o golpe à cidadania, tão clamada e reclamada em 1964 por aquelas pessoas que marcharam, na grande maioria mulheres, só que eu ainda era uma mulher em formação.
Dali em diante, cenas, sons, cheiros e gostos muito fortes se misturaram e passaram a fazer parte do cotidiano. Anos terríveis, anos incríveis: cenas de mais violência, sons de protesto, bolinhas de gude, cavalos, bombas; cheiro de pólvora, gás lacrimogênio, amoníaco, cocô de pomba; gosto amargo de impotência, de estranheza do aparente doce da tranquilidade intranquila em que vivíamos.
Curioso também é lembrar do nosso Diretor, Gomes Cardim: homem bondoso, cordial e, sobretudo, guardião da moral e dos bons costumes da Escola e fora dela, pois ele costumava –aos moldes do caça-gazeteiro que líamos nas revistinhas da “Luluzinha” e do “Bolinha” – dar imensas voltas nas cercanias da Praça para vistoriar se nós alunos, por acaso não estávamos pisando nos Trópicos das proibições com que nos víamos obrigados a conviver dentro e fora da Escola. As linhas imaginárias compreendiam o distanciamento total entre rapazes e garotas – aqueles estudavam de manhã e nós à tarde; raras eram as oportunidades de nos avistarmos e nos juntarmos. Volta e meia pais de alunas eram chamados ao Colégio para serem cientificados de que suas filhas estavam circulando pelos trópicos proibidos do namoro, do cigarro, da gazeta, etc.. Alguns pais correspondiam às perspectativas do guardião da moral e dos bons costumes, outros manifestavam ciência dos fatos e comunicavam seu consentimento ao comportamento “travesso” de suas filhas.
Imaginem em plena década de 60, da revolução sexual, da pílula anticoncepcional, dos Beatles, de Woodstock, da ampla liberação, nós no IECC vivendo sob a falsa moral de uma ou, quiçá, duas décadas anteriores.
Receio que pouco adiantaram as perigrinações internas e externas do nosso saudoso Diretor, pois nós alunos, sempre criativos, dávamos um jeito de passar pelas linhas imaginárias e viver as boas coisas da adolescência: as paqueras, principalmente aos sábados; as festas na casa do Heraldo – lá nós conhecemos luz negra e estroboscópica, gelo-seco, cuba-libre, hi-fi; os jogos da Primavera intercolégios estaduais no Clube Atlético Ipiranga, onde torcíamos por nossos astros do handball, modalidade na qual chegamos a ser pentacampeões – nosso ídolo era o Sharp, grande sujeito (hoje treinador em boas equipes esportivas); os ensaios da fanfarra para futuras apresentações; os bilhetinhos que deixávamos nas carteiras das salas de aula; as idas ao teatro com as professoras de Português Francês ou ainda aos ciclos de debates sobre Literatura na Biblioteca Municipal; enfim, o suposto suplício da época hoje me parece exitante, estimulador, picante e com o sabor inigualável das aulas cabuladas no porão do Colégio ou das escapulidas que dávamos para os cinemas, bem frequentados, das adjacências: Cine Coral, Regina, República, Metrópole e outros.
Memórias boas, queridas, insubstituíveis.
Sonhos, alguns realizados, outros por se concretizar.
Amigos, alguns mantidos, outros reencontrados ao longo da jornada.
Reconquista, por esfoço de uns, de um espaço dentro da Escola para poder – aqueles que sentem o mesmo que eu – relembrar, confraternizar e, principalmente, projetar o futuro, reconstruindo o presente a partir da comemoração dos 100 anos da edificação da nossa Escola. Refletindo sobre o que tivemos e o que tem nossos filhos e terão nossos netos, se não fizermos algo empreendedor e sério, para recuperar a memória dos 150 anos da Instrução Pública no Brasil, a partir de 1846, quando a nossa Escola surgiu!