Por Roberto Barone- aluno da década de 1950
A coisa começou ali, naquele pequeno espaço público da Praça da República, no antigo prédio do Instituto de Educação Caetano de Campos. O ano era os idos de 1950. Naquele tempo, eu estudava no curso noturno, no primeiro ano ginasial do IE Caetano de Campos e morava na Rua Nova York, atual Rua Havaí, no Alto do Sumaré.
Ao sair do curso íamos em grupo de quatro, todos moleques, que morávamos na mesma região, subindo pela Rua da Consolação. Íamos a pé, agitados, em tremenda algazarra para economizar o dinheiro da condução. Naquela época, a Rua da Consolação era estreita, mal iluminada, com muitas casas, pouco comércio e algumas pensões no trajeto. Havia no ar um silêncio brusco da noite. Silêncio este só quebrado pelo ruído das vozes fragmentadas da molecada e dos bondes que subiam e desciam nos dois sentidos da rua.
Já lá no topo da Consolação, numa bifurcação, próximo às confluências das Ruas Minas Gerais, Rebouças, Angélica e Paulista havia um posto de gasolina bem no centro da rua, onde os trilhos dos bondes faziam um pequeno desvio lateral como se fosse uma justaposição no traçado geométrico, deixando estrategicamente dessa maneira, o posto de gasolina bem no meio da rua. Do lado esquerdo, no começo da Avenida doutor Arnaldo, havia um punhado de vagas casinhas todas paralelas, encolhidas no fundo do terreno, com suas janelas pintadas de verde, no antigo Instituto de Infectologia e Isolamento Emilio Ribas.
Do outro lado da Avenida, onde hoje é o velório do cemitério do Araçá, tinha uma enorme porta de madeira, onde uma luz difusa deixava-se filtrar nas ranhuras do lenho o interior daquela casa onde eram realizadas as autópsias do Instituto Médico Legal.
Do lado esquerdo da avenida de quem vai ao sentido do bairro, a velha Faculdade de Medicina de São Paulo com seu exuberante jardim erguia-se soberana no meio do terreno um tanto afastado da rua. Do outro lado, seguiam-se os muros esponjados pintados de branco do cemitério do Araçá. Já no meio da avenida, dispostas em sequência, havia grandes árvores seculares estendendo seus ramos lenhosos para ambos os lados da rua. Ela era estreita, sombria, entre os postes da Light de luz mortiça, sempre encobertas pelos grossos ramos das árvores, deixando filtrar apenas uma pequena nesga de luz difusa, naquele ambiente lúgubre.
Mais à frente, erguia-se a Faculdade de Higiene e Saúde Pública, próximo ao anexo Centro de Tratamento de Hanseníase, onde hoje abriga no seu interior o Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza da Faculdade de Saúde Publica da USP. Naquele tempo, havia um bonde permanentemente estacionado em frente deste Centro de Saúde, sendo ele gerador e transformador de eletricidade para a manutenção da circulação dos coletivos que seguiam para os bairros de Pinheiros, Vila Madalena e Avenida Doutor Arnaldo.
Foi ali, naquele pequeno espaço isolado e deserto, que foi o cenário apavorante entre a rua e o cemitério, que a molecada, em algazarra, resolveu jogar o meu fichário escolar para dentro do muro do cemitério. Ouvi um chocalhar de papéis, pastas e livros se espalhando entre a terra úmida e o negro asfalto de uma das alamedas dentro do cemitério. Não tive dúvidas. Resolvi pular o muro para apanhar o meu material, enquanto a molecada zombava da façanha do outro lado de fora.
Uma vez lá dentro do cemitério, comecei apanhar o meu material que estava todo esparramado pelo chão de terra fofa. De repente, aconteceu o inusitado. Uma chama azulada de mais ou menos cinquenta centímetros de altura estava parada entre um túmulo e outro, no meio da terra, como se estivesse me espreitando. Fiquei gelado de medo. Ao me movimentar em direção ao muro, a chama veio vinda em minha direção e eu, apavorado, parei e fiquei enregelado enquanto ela também parou. Parecia que ela me acompanhava como se fosse uma assombração. Quem sabe não seria alguma luz do outro mundo?
O medo se apoderou de mim. Recolhi rapidamente o meu material e corri para galgar o muro de volta para a rua. Ao pisar no asfalto negro da alameda dentro do cemitério, ela parou de seguir-me. Após um esforço sobre humano, porque as minhas pernas tremiam, consegui galgar o muro e atirar-me lá de cima para o calçamento da rua. A molecada, ao ver-me branco como papel, ficou preocupada e perguntaram-me o que havia acontecido. Depois das explicações e da incredulidade deles, fui embora direto para casa. Confesso que naquela noite não consegui pregar olho.
Seria um fantasma? Uma assombração? Alguma alma penada? Afinal, o que seria de fato aquela chama azulada que caminhava em minha direção? No dia seguinte, ao relatar o fato ao meu professor, ele me tranqüilizou.
- Aquilo que você viu dentro do cemitério não era nenhum fantasma ou chama do outro mundo. Era apenas o Fogo Fátuo, um gás proveniente da decomposição de algum cadáver recém-enterrado que, ao entrar em contato com a atmosfera, se incendiou, produzindo aquela chama azulada.
- E porque ela veio atrás de mim? – perguntei angustiado.
A resposta foi lacônica.
- Conforme você se deslocava, a pequena corrente do ar produzido pelo seu corpo em movimento impulsionava a chama em sua direção. Quando você subiu no asfalto da alameda, ela parou, porque o gás não tinha mais como se expandir e deslocar-se pela terra.
Seriam os fantasmas do cemitério? Alguma alma penada? Uma luz do além? Quem sabe?! Porém, fiquei mais confiante e aliviado com a explicação do meu velho professor de ciência e química, era apenas o fogo fátuo. Ufa! Que alívio!
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